Centro Cultural Wagôh Pakob e o povo Paiter Suruí celebram oito anos de monitoramento da harpia, espécie-chave para a conservação das florestas
- Fabrício Gatagon Suruí
- há 3 dias
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Uma iniciativa liderada pelos Paiter Suruí, por meio do Centro Cultural Indígena Paiter Wagôh Pakob, situado na Terra Indígena Sete de Setembro, território que abrange áreas de Rondônia e do noroeste do Mato Grosso, reafirma o papel da harpia (Harpia harpyja) como bioindicador da integridade e da saúde das florestas amazônicas, fortalecendo o protagonismo indígena na conservação da paisagem e na manutenção de predadores de topo na região. O coordenador das atividades, o biólogo Paiter Fabrício Suruí, registrou nesta sexta-feira (22/11/2025), o início do quarto reprodução da harpia, com a postura de um ovo no ninho monitorado de forma contínua há mais de oito anos (Figura 1).

A harpia, reconhecida como o maior predador do dossel amazônico, apresenta ciclos reprodutivos naturalmente longos, com intervalos de três anos entre cada postura, um período relacionado ao crescimento do filhote e ao cuidado parental necessário para garantir sua sobrevivência. A espécie depende de extensas áreas florestadas para nidificação, sendo sensível à fragmentação do habitat, o que reforça a importância de monitoramentos sistemáticos realizados em territórios indígenas preservados (Figura 2). Embora, possa ocorrer em pequenos fragmentos, que tenham boas disponibilidade de presas.
Este ninho que vem sendo monitorado desde 2017, sob coordenação do biólogo Paiter Fabrício Suruí, constitui um dos mais longos programas contínuos de acompanhamento de harpia realizados em território indígena na Amazônia brasileira. O trabalho ganha relevância adicional por ocorrer em uma região inserida no chamado “Arco do Desmatamento”, onde a pressão antrópica sobre a fauna e os habitats florestais é particularmente intensa. Portanto, o registro da nova postura indica o início de mais um ciclo reprodutivo, fornecendo dados-chave para análises sobre comportamento reprodutivo, cuidado parental, dieta, e padrões de uso de hábitat no território.

No início do monitoramento, em 2017, com o conhecimento e apoio da comunidade Wagôh Pakob, as atividades de campo contaram com o fundamental suporte técnico do Projeto Harpia, núcleo Rondônia. A colaboração do fotógrafo Carlos Tuyama e sua esposa Cristina Tuyama foi especialmente decisiva para a instalação das primeiras câmeras trap e para o compartilhamento de sua experiência, contribuindo diretamente para o estabelecimento da estrutura básica do acompanhamento contínuo.
A harpia, maior águia das Américas e espécie classificada como vulnerável à extinção, é um importante indicador ecológico para integridade das florestas tropicais, pois sua presença depende diretamente da manutenção de grandes áreas de floresta preservada e de cadeias tróficas equilibradas. Entre os Paiter Suruí, porém, seu significado transcende a dimensão biológica: a harpia ocupa um lugar simbólico profundo, associada à força, sabedoria, cultura e proteção espiritual. Assim, o monitoramento realizado no território não é apenas uma atividade técnica, mas um compromisso que integra responsabilidades culturais, ambientais e espirituais refletindo a relação dos Paiter com a floresta como um espaço vivo, ancestral e sagrado.
Monitoramento da espécie-chave que mantém a floresta viva e a cultura Paiter
O monitoramento do ninho de harpia, coordenado pelo biólogo Paiter Fabrício Suruí, é realizado com a participação ativa da comunidade, envolvendo jovens, adultos e lideranças do Centro Cultural Wagôh Pakob. Ao longo desses anos, os Paiter têm realizado o monitoramento direto e indireto da espécie, integrando-o às atividades cotidianas de expedição para a coleta de castanha (Bertholletia excelsa), de gongo, larvas de besouros crisomelídeos que se desenvolvem no babaçu (Attalea speciosa Mart.), e de frutos comestíveis em geral. Essa integração entre práticas tradicionais e observações sistemáticas tem permitido obter registros peculiares e relevantes sobre o comportamento, a dieta, o ciclo reprodutivo e as interações ecológicas da harpia, além de assegurar a proteção do ninho contra possíveis invasores.
Os registros do ninho são obtidos por meio de uma câmera trap instalada em estrato superior, posicionada estrategicamente entre troncos acima da plataforma do ninho, de modo a maximizar a eficiência na captura contínua de imagens e minimizar interferências no comportamento da espécie. Os cartões de memória são substituídos em intervalos regulares de 25 a 30 dias. Assim, neste sábado (22/11/2025), as imagens analisadas confirmaram um conjunto de comportamentos reprodutivos característicos da espécie, incluindo a maior frequência de visitas do casal ao ninho, indícios compatíveis com acasalamentos recentes, repouso prolongado da fêmea na plataforma, comportamento de vigilância do macho na copa e, por fim, a postura do ovo registrada na noite de 21 de novembro de 2025.
Cada ciclo reprodutivo da harpia é naturalmente lento, característica comum a grandes aves de rapina carnívoras que ocupam o topo da cadeia alimentar. Um único filhote pode depender dos pais por dois a três anos, o que torna cada postura um evento raro, prolongado e de alta relevância biológica especialmente na Amazônia, onde a espécie enfrenta pressões ambientais e perda de habitat.
A Conservação na perspectiva do Povo Paiter
A conservação ambiental em territórios indígenas constitui um campo singular, onde cosmologias, práticas tradicionais e conhecimentos ecológicos locais se entrelaçam às formas próprias de manejo territorial desenvolvidas ao longo de gerações. Nesse contexto, os modos indígenas de perceber, habitar e cuidar da floresta dialogam de maneira complementar com estratégias contemporâneas de conservação, produzindo abordagens integradas que reconhecem a interdependência entre território, cultura e biodiversidade.
No território Paiter Suruí, o monitoramento de harpias desenvolvido pelo Centro Cultural Indígena Paiter Wagôh Pakob (Figura 3), constitui um exemplo robusto dessa convergência entre saberes, integrando conhecimentos tradicionais, observações de campo e metodologias científicas contemporâneas.

A iniciativa torna ainda mais essencial diante das crescentes pressões ambientais que ameaçam a integridade da floresta, os ciclos ecológicos e a biodiversidade local, reforçando o papel das comunidades na ‘guardiões da floresta’ e gestão de seus territórios.
Técnicas utilizadas
O acompanhamento contínuo dos ninhos, iniciado em 2017, integra metodologias contemporâneas como o uso de câmeras trap, registros fotográficos e observações diretas aos princípios tradicionais de respeito, reciprocidade e leitura dos sinais da floresta. Essa combinação permite não apenas documentar o comportamento biológico da espécie, mas também compreender como sua presença se insere em ciclos ecológicos mais amplos, revelando relações profundas entre a harpia, a saúde do território e o bem-estar da comunidade. O monitoramento fortalece uma visão integrada de conservação, na qual a vida da ave, da floresta e das pessoas se conecta em uma mesma rede de responsabilidades e cuidados.
Importância Cultural da Harpia para os Paiter Suruí
No contexto cultural Paiter, a harpia é vista como um ser de grande importância simbólica. Sua presença está associada à vitalidade da floresta e à continuidade das relações de reciprocidade entre humanos e demais seres. Trata-se de um animal que compõe narrativas tradicionais, orienta práticas de caça e manejo e, ao mesmo tempo, reforça a memória coletiva sobre o cuidado com o território sobretudo fortalece valores culturais e a transmissão de saberes às gerações mais jovens. Segundo a equipe ambiental do Wagôh Pakob, o acompanhamento contínuo do Ikõhr Iter (H. harpyja, em Tupi-mondé) tem permitido:
“Contribui diretamente para a tomada de decisões no manejo territorial e na proteção de áreas sensíveis dentro da Terra Indígena, reforçando o papel das comunidades como guardiãs da floresta e fortalecendo as ações de conservação da biodiversidade.”
O Urariwe Suruí, coordenador do Centro Cultural, também destaca a importância do monitoramento:
“Cada novo registro é motivo de alegria para nós. A harpia faz parte da nossa história, da nossa cultura e do equilíbrio da floresta. Ver esse casal iniciando mais um ciclo é como ver a própria floresta respirando e se fortalecendo (2025).”
Conservação comunitária como estratégia territorial
A continuidade das atividades de monitoramento ao longo de quase uma década consolidou o trabalho do Centro Cultural Wagôh Pakob como referência regional em conservação participativa de espécies ameaçadas. A iniciativa demonstra que ações comunitárias: A) Podem gerar dados ecológicos de alta relevância científica; B) Contribuem para decisões de manejo territorial, zoneamento e proteção de áreas sensíveis; C) Fortalecem a autonomia indígena na governança ambiental. Além disso, o monitoramento incentiva a formação de jovens pesquisadores indígenas e não indígenas, ampliando o protagonismo local na produção de conhecimento sobre a fauna e na defesa da conservação da sociobiodiversidade amazônica.
Impacto socioambiental
Os impactos socioambientais desse trabalho são expressivos. No âmbito ecológico, o monitoramento contribui para a identificação de áreas prioritárias para conservação, para a proteção de hábitats críticos e para a manutenção da conectividade florestal. No campo social, fortalece o protagonismo indígena, incentiva a formação de jovens pesquisadores Paiter, amplia a participação comunitária na gestão territorial e valoriza o conhecimento tradicional como ferramenta indispensável para políticas de conservação. Em conjunto, esses resultados demonstram que iniciativas comunitárias, como a do Wagôh Pakob, têm potencial para se consolidar como referências regionais na conservação de espécies ameaçadas e na proteção da sociobiodiversidade amazônica, incluindo a salvaguarda de populações de castanhais na região, áreas amplamente utilizadas pela harpia para nidificação e reprodução.
Importância regional e global
A harpia enfrenta ameaças em grande parte da Amazônia pela perda de hábitat, causada pelo desmatamento para atividades agropecuárias, exploração ilegal de madeireira e conflitos com humanos. O registro contínuo de um ninho ativo ao longo de quase uma década representa uma contribuição valiosa para pesquisadores, instituições ambientais e programas de conservação no Brasil e na América Latina.
O novo ciclo reprodutivo, confirmado em 21 de novembro de 2025, reforça o sucesso da estratégia adotada pelo Centro Cultural Wagôh Pakob: integrar conhecimento tradicional, tecnologia, manejo territorial e educação ambiental para proteger uma das espécies mais emblemáticas das florestas brasileiras.
Texto: Fabrício Gatagon Surui
@projetoharpiabrasil







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